segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Amor, só de letras

Autor: Mario Prata
Originalmente publicado em "O Estado de São Paulo" (20 de Setembro de 2000)

Conta a história que dom Pedro II casou-se sem conhecer a sua noiva. Tinha visto um quadro com a cara da princesa. Casamento de interesses políticos lá dos portugueses, fazer o que? E quando a moça chegou no porto do Rio de Janeiro - consta - que ele fez uma cara emocionada. Pela feitura da imperial donzela. Mas casou, era o destino, era a desdita.

Tenho um avô que foi pedir mão da moça e o pai dela disse:

- Essa tá muito novinha. Leva aquela.

E ele levou aquela que viria a ser a minha avó. Ah, a outra morreu solteirona.

Quando aconteceu o grande boom da imigração japonesa, alguns anos depois, familiares que lá ficaram mandavam noivas para os que cá aportaram. Tudo no escuro. E de olhinhos fechados, ainda por cima.

De uns tempo para cá, o conceito da escolha foi mudando. Até ir para a cama antes, valia. Ficava-se antes. Só que agora, finzinho do finzinho do século, surgiu um outro tipo de casamento. O casamento de letras. Letras de textos. O texto - finalmente, digo eu, escritor - virou casamenteiro. Apaixona-se, hoje em dia, pelo texto. Via internet. Via cabo, literalmente.

Conheço quatro casos bem próximos. Gente que desmanchou o casamento de carne e osso por uma aventura no mundo das letras. Claro que estou me referindo aos encontros via Internet. Começa no chat, com o texto. Gostou do texto, leva para o reservado. E lá, rola. Eu mesmo já me envolvi perdidamente por dois textos belíssimos. Moças de vírgulas acentuadas, exclamações sensuais e risos de entortar qualquer coração letrado ou iletrado.

Sim, pela primeira vez nesta nossa humanidade já tão velhinha, as pessoas estão se conhecendo primeiramente pela palavra escrita. E lida, é claro. Já disse, isso envaidece qualquer escritor. Agora, o texto pode levar ao amor. Uma espécie de amor-de-texto, amor-de-perdição.

A relação, o namoro, começa ali no monitor. Você pode passar algumas horas, dias e até semanas sem saber nada da outra pessoa. Só conhece o texto dela. E é com o texto que vai se fazendo o charme. Você ainda não sabe se a pessoa é bonita ou feia, gorda ou magra, jovem ou velha. E, se não for esperto, nem se é homem ou mulher. Mas vai crescendo uma coisa dentro de você. Algo parecidíssimo com amor. Pelo texto.

Pouco a pouco, você vai conhecendo os detalhes da pessoa. Idade, uma foto, a profissão, a cor. Inclusive onde mora. Sim, porque às vezes você está levando o maior lero com o texto amado e descobre que ele vem lá da Venezuela. Ou do Arroio Chuí. Mas se o texto for bom mesmo, se ele te encanta de fato e impresso, você vai em frente. Mesmo olhando para aquela fotografia - que deve ser a melhor que ela tinha para te escanear (ou seria sacanear, me perdoando o trocadilho fácil) você vai em frente. "Uma pessoa com um texto desses..." A tudo isso o bom texto supera.

Quando eu ouvia um pai ou mãe dizendo "meu filho fica horas na Internet", todo preocupado, eu também ficava. Até que, por força do meu atual trabalho, comecei a navegar pela dita suja. E descobri, muito feliz da vida, que nunca uma geração de jovens brasileiros leu e escreveu tanto na vida. Se ele fica seis horas por dia ali, ou ele está lendo ou escrevendo. E mais: conhecendo pessoas. E amando essas pessoas.

Jamais, em tempo algum, o brasileiro escreveu tanto. E se comunicou tanto. E leu tanto. E amou tanto. No caso do amor ali nascido, a feitura, o peso, a cor, a idade ou a nacionalidade não importam. O que é mais importante é o texto. O texto é a causa do amor.

Quando comecei a escrever um livro pela internet, muitos colegas jornalistas me entrevistavam (sempre a mim e ao João Ubaldo) perguntando qual era o futuro da literatura pela Internet. Há quatro meses atrás eu não sabia responder a essa pergunta. Hoje eu sei e tenho certeza do que penso:

- Essa geração vai dar muitos e muitos escritores para o Brasil.

E muita gente vai se apaixonar pelo texto e no texto.
Existe coisa melhor para um escritor do que concluir uma crônica com isso?

Quer uma prova? Estou fazendo um concurso de crônicas no meu site (marioprataonline.com.br), entre os leitores/escritores. Entre lá e veja o nível. Pessoas que há pouco tempo atrás odiava escrever redação nas escolas, estão descobrindo o texto. Leiam e me digam se eu não estou certo. E são jovens, muito jovens.

Como diria Shakespeare, palavras, palavras, palavras. Como diria Pelé, love, love, love.


sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Jogo de estranhos

Se apaixonou pela garota do prédio ao lado, mesmo sem grandes atribuições. Não era bonita o suficiente pra estampar as páginas centrais de uma grande revista de moda nem preenchia outdoors de escolas particulares da cidade. Tinha cabelo curto, piercing no nariz, tatuagem no pulso e no pescoço e falava apressadamente. Deveria citar 1003 palavras em apenas 1 minuto. Seu sorriso completava todos os comerciais de creme dental já vistos na televisão. Era culta. Lia Bukowski, Franz Kafka e Machado de Assis só pra nacionalizar a coisa. Era oculta. Pouco se sabia sobre como viera parar ali ou para onde iria.

Não aguentou e decidiu segui-la, aproveitando que precisava sair. Girou as chaves e procurou velocidade em seu sonho de romance. Ela seguia devagar, discreta, sem pressa, totalmente diferente de quando falava ao telefone, provavelmente com as amigas, pois sempre dizia nomes e cores de esmaltes indecifráveis e inteligíveis para qualquer mente masculina. Ia pela estrada sempre seguindo a mesma faixa, que parecia contínua tal qual sua vontade de afastar-se dele. Já passava das 5. Da tarde. Ele dirigia apressadamente. Deveria atingir 1003 quilômetros em apenas 1 minuto. Pareciam estar indo para o mesmo lugar. Voltemos à realidade.

Descia do carro com seu vestido floral, sapatilha cor de pele, bolsa preta, maquiagem leve e toda a alegria de quase adulta. Mexia no cabelo repetidas vezes e tinha uma mistura compassada de pinturas em seus fios delineados. Só bebia água em seu próprio copo. Queria namorar um homem mais velho, mas já sonhara em ser paixão de um padre. Não aturava mentiras nem ficante metido a rei da balada. Era estudiosa. Apresentava teses e antíteses completadas em uma síntese de vermelhidão tranquila em seu rosto de princesa. Aliás, de deusa. Quando exagerava no álcool, falava inglês, francês, russo. Só queria ser feliz.

Foi quando viu aquele jovem, perdido no primeiro andar da universidade, prestes a adentrar na mesma sala em que passariam os próximos 5 anos juntos. Não fez planos, não dizimou oportunidades, apenas perguntou seu nome. E descobriu que eram vizinhos e que poderiam apostar corrida todas as noites até que um cansasse da disputa e aceitasse parar, respirar e seguir em frente. No prédio ao lado. Eram vizinhos. Contadores de histórias. Sonhador e sonhadora de algo bom. Disso que se chama vida...