domingo, 28 de setembro de 2014

Do outro lado da ponte

Acordou para o desespero.

Tocou-se lentamente e sentiu algo diferente em seu corpo. Seios maiores, pernas torneadas, cabelo extremamente liso. A cama não era a mesma da noite passada. O quarto, antes maltratado pela ação do tempo, com suas paredes de tijolo exposto e telhas deslocadas por causa do vento, dava lugar a um espaço minimamente decorado, com quadros coloridos e prateleiras cheias de livros e dvd’s. Era um sonho. Sentiu-se uma princesa.

Levantou, abriu o closet (antes simplesmente guarda-roupa) e deparou-se com dezenas de perfumes, cremes, joias, roupas e sapatos. Pegou um daqueles pares que admirava na televisão e colocou em seus pés. Perfeição. Desequilibrou-se um pouco ao pisar no chão, mas logo se acostumou ao piso branco e à nova altura que ganhara graças aos 12 centímetros do salto. Caminhou em direção à janela e abriu aquele seu novo mundo. Nada de vizinhos barulhentos, nada de roupas estendidas no varal da esquina. Estava de frente para a praia. Ponta d’Areia. Apartamento 503.

O que teria acontecido? Por que acordou em um quarto estranho, em uma casa estranha e tão diferente? Decidiu investigar. Do alto de seus 18 anos, encontrou uma carteira de couro de cobra com uma identidade totalmente diferente daquela que tirara no Viva Cidadão anos atrás. Novo nome, novos pais, nova vida. Desesperou-se.

Abriu a porta e encontrou o nada às 6 da manhã. Nada do irmão pequeno berrando, nada da mãe lavando roupa, nada do pai desejando um bom dia e indo trabalhar na construção de um daqueles prédios do outro lado da cidade. Percebeu que estava do outro lado da ponte e sentiu falta de tudo o que reclamava. Ouviu um barulho na cozinha e resolveu ver o que era. A empregada preparava um café da manhã reforçado. Deu bom dia e perguntou por “seus pais”. “Foram trabalhar, ué”. Perguntou onde e recebeu como resposta um suave “na empresa”. A considerar os móveis, os tablets espalhados pela mesa de centro e a TV de LED 46 polegadas da sala, sua nova “família” era bem rica.

“Você vai se atrasar”, disse a empregada. “Pra onde?” “Você está tão estranha hoje, Amanda”. Amanda? Ah sim, Amanda. “Sério, pra onde? Me esqueci completamente”. “Faculdade, curso de Medicina, CEUMA, esqueceu?” Amanda não acreditou. Era estudante de um dos melhores e mais caros cursos da cidade. Tomou o melhor banho da vida, vestiu uma roupa que julgava ideal para a faculdade, tomou café e saiu. Namorado esperando à porta, beijo na boca, um leve tapinha na bunda, um puta susto. Elevador, uns amassos, prazer nunca antes sentido, carro de luxo, sala de aula.

Amanda passou toda a aula de Processos Metabólicos tentando entender como chegara àquela casa e por que tudo aquilo estava acontecendo. Merecimento, castigo, sonho? Desistiu, pensou nos antigos pais, foi ao banheiro e, egoisticamente, olhando para o espelho, esboçou um sorriso desses de comercial de creme dental e disse para si mesma:

- Eles iriam gostar de ter uma filha médica. Adeus, Coroadinho!

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

E agora, São Luís?

Tenho me perguntado se São Luís ainda tem jeito. Se ainda dá pra acreditar nessa ilha idosa, nessa cidade que parece que estagnou sua memória nos anos 80 ou 90, protagonizando o que chamo de Alzheimer urbano. Qual a maior glória de nosso passado recente desde a famigerada nomeação como Patrimônio Cultural da Humanidade? O ano era 1997 e, de lá pra cá, nossas maiores conquistas foram uns 4 shoppings centers e muito, mas muito barzinho e restaurante.

São Luís tornou-se uma cidade cara desnecessariamente. Aqui, quando o assunto é lazer, é bem quisto quem pode esbanjar bastante em uma única noite, preso a opções quase sempre comuns, como a Lagoa da Jansen e a Avenida Litorânea. O chopp dobrado é a premissa e os acidentes de trânsito, já tão corriqueiros, são a grande consequência. Não há parques municipais de fácil acesso ou praças arborizadas para a folga do fim de semana. No meio imobiliário, apartamentos cada vez menores e cada vez mais caros pintam o cenário de uma modernidade que só alcança alguns de nós.

O Centro Histórico, riquíssimo em potencial cultural, está entregue à violência e à falta de gestão. Casarões seculares, que serviram de morada para grandes poetas, agora dão lugar a tristes ruínas. Projetos de décadas nunca saíram do papel e, pelo andar da carruagem de Ana Jansen, nem vão. Principais culpados por essa ingerência, os políticos maranhenses fingem não enxergar o problema, evitando parcerias institucionais entre Estado e Município. Triste de nós se não tivéssemos o IPHAN. Um órgão chato, mas extremamente necessário.

Nosso sistema de transporte vive um colapso. Esperançosos com a promessa da licitação das linhas de ônibus, passamos horas em latas velhas que ligam um extremo ao outro da cidade, através de avenidas planejadas para uma outra época e que não suportam mais o peso de um crescimento forçado. Quem vai de carro, vê seu tempo passar arrastado em meio a tantos engarrafamentos quilométricos. Nossa região metropolitana não é interligada de maneira inteligente e uma das soluções viáveis sob trilhos está guardada em um galpão na entrada da capital, sem previsão para início dos trabalhos.

Praias poluídas, esgoto a céu aberto, saúde mal das pernas, buraqueira lunar e uma proposta de mudança. Sinceramente, não sei se temos o que comemorar nesses 402 anos. Talvez possamos festejar, sim, a garra de um povo que começa a trabalhar cedo (não às 9 da manhã) e que, mesmo cercado de tantos problemas, vai fazendo acontecer nos mais diversos bairros dessa ilha inexata. Talvez possamos comemorar o potencial artístico de nossa gente, dos jovens músicos, atletas, professores, escritores, comerciantes... Aqui é berço de ouro pra quem ama o que faz.

Sei lá o que o futuro me reserva. Já sonhei em ser prefeito dessa cidade, mas deixei de lado essa ideia maluca quando conheci o lado sujo da política. Descobri que existem outros meios de ajudar, evitando o tal do poder. Por amar demais a minha terra, não desisto dela. Não desisto de fazer acontecer todo santo dia, lá na Defensoria Pública, ainda como estagiário, mas em busca de uma justiça que eu nem sei direito se existe, e com o único intuito de ajudar os milhares de ludovicenses que ali nos procuram. Torço para que daqui a um tempo, os filhos destes homens e mulheres saibam reconhecer o valor das pequenas coisas, a fim de que possam transformar São Luís em uma grande cidade. Eu estou fazendo a minha parte enquanto cidadão. E você, o que já fez por sua cidade hoje?

8 de setembro: aniversário de São Luís do Maranhão

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Pra sonhar

Por Talita Plum*

Já pensou se acabássemos nossas vidas juntos? Que loucura, né? Viver juntos para todo o sempre, juntar escovas de dente e sonhos em uma mesma mala, caminhar na mesma estrada e olhar na mesma direção, por cinco, dez, vinte, uma eternidade de anos. Já pensou na escolha do nosso apartamento em Copacabana, como eu quero, ou em uma casa em Ipanema, como você almeja? Nós brigaríamos pra ver qual escolha se tornaria decisão, e discutiríamos, também, por causa da cor da cortina e da parede. Eu gosto de laranja, já você prefere o vermelho. E, no fim, a cortina seria amarela e a parede azul. 

Mas será que você realmente já parou para imaginar como seria a nossa vida a dois? Todas as manhãs me vendo acordar de aparelho e eu tendo que aguentar suas manias enquanto dorme. Minha bagunça te irritaria e a sua organização me estressaria de um jeito que nem sei descrever. Minhas roupas e sapatos ocupariam metade do guarda-roupa e você se sentiria sem espaço. Eu escutaria música no último volume, um rock bem pesado, enquanto você pediria para abaixar e pôr algo mais acessível aos seus ouvidos. Eu te chamaria de fresco e você, por birra, seria mais ainda.

E assim levaríamos e levaríamos, até a chegada dos nossos filhos, os quais seriam as criaturas mais amadas desse mundo – um menino e uma menina, como nós combinamos. Você iria querer transformar a garota em uma boneca, enquanto eu seria contra, dizendo que mulheres são mulheres, não Barbie’s. Com o menino, você seria demasiadamente rígido, enquanto eu diria pra não exagerar tanto. E, mais uma vez, brigaríamos – agora por causa da educação dos nossos filhos. 

Algumas noites seriam bem ruins e sofridas. Porém, diferente de qualquer outro casal, a cada briga nós nos amaríamos mais, pois você se viraria para mim e diria que compraríamos o apartamento em Copacabana, enquanto eu pensaria nos nossos futuros filhos e veria que uma casa seria melhor (desde que tivéssemos uma empregada). Por causa da sua mania em pôr as roupas em cima dos móveis, eu mostraria o meu lado dona de casa, que odeia desarrumação e você começaria a dar valor na bagunça. Depois de um tempo, você se acostumaria com os solos de guitarra e se juntaria à minha festa, enquanto eu abaixaria um pouco o volume, para não te deixar surdo. A nossa linda garotinha seria uma princesa, como você sempre quis, mas também seria uma mulher decidida e inteligente como a mãe, a qual você escolheu pra ser sua esposa. E o garoto seria criado por um pai forte e severo, mas que saberia amá-lo e passar a mão em sua cabeça nas horas certas.

Nossos problemas seriam o combustível pra continuar a nossa vida a dois, sempre caminhando de mãos dadas e bocas seladas. Você calçado e eu descalça; você de terno e gravata e eu de short e chinelo; você advogado e eu historiadora. Diferenças gritantes, mas que se extinguiriam quando, nos quartos ao lado, as crianças fechassem os olhos, e nós nos entregássemos um ao outro, mão com mão, pé com pé, sua boca na minha, em um ritmo louco, frenético e muito apaixonado. Não seríamos eu e você: seríamos nós! Um só corpo, uma só alma.

Volto a repetir: que loucura, né? Com certeza, uma loucura! Porém, mais loucura ainda seria se não acabássemos juntos, vivendo tudo isso e algumas cositas a mais. Loucura seria se eu não voltasse à sua casa depois de uma briga e deitasse no chão. E mais loucura mesmo seria se você não adoecesse e eu não me preocupasse ao ponto de ir cuidar de você. Loucuras e mais loucuras. A maior loucura seria se eu não quisesse passar o resto dos meus dias colada a você. À sua pele, à sua barba, à sua perna, ao seu corpo, ao seu destino. 


*Talita Plum - 19 anos, graduanda em História e Senhora do Tempo!