domingo, 26 de setembro de 2010

Contos de Whisky IV

E despediu-se como se fosse a última vez.

Talvez fosse. Bruna não saberia como viver sem aquele homem. O cara que a fez conhecer o mundo de verdade, completamente distante dos contos de fada. O jovem que cresceu ao seu lado, tornou-a uma pessoa melhor e agora vai embora, deixando-a triste, afogando suas mágoas em um copo de cerveja barata. Quem diria, hein? Aqueles dois, sempre tão unidos, terminando um relacionamento por causa de diferenças.

Recordo-me do dia em que Lucas ligou a torneira do jardim e começou a molhar as plantas da casa de Bruna. Uma por uma, aquelas folhas secas iam dando molde a um novo espaço, molhado, diferente. Bruna, incrédula, começou a abraçar o namorado, tentando agradecer pelo favor. Explico-me. Bruna acreditava que se as folhas de seu jardim estivessem secas era sinal de que algo ruim aconteceria a ela. Em um belo sábado, enquanto tomavam água de coco próximo à praia, a garota comentou sobre tal superstição. Lucas deu de ombros, como se não se importasse e ainda comentou uma ou duas coisas sobre o fato de não ser supersticioso. Entretanto, cedinho, na manhã do domingo, lá estava o rapaz regando o futuro da namorada. Eles tinham apenas 2 meses juntos.

Bruna queria esquecer tudo aquilo. Todos aqueles anos em que fora enganada pela suposta máscara do namorado. Ele não era, nem nunca seria o seu jardineiro fiel. Talvez seu ex-namorado, talvez o primeiro amor de infância, cogitou até sua melhor amiga, mas ele não. Ele era página virada. Bruna queria sumir daquela cidade, recomeçar sua vida ao lado de pessoas novas e esquecer que um dia fora namorada de Lucas. Mas não adiantaria. Se fugisse, seria vista como covarde pelos outros, e a coisa que Bruna mais odiava nessa vida era ser analisada. Bem, eu sei que o que ela tinha mesmo era medo das opiniões alheias, sempre certas.

Lucas odiava assistir filme legendado, era vegetariano, não tinha religião definida, não trabalhava, era viciado em internet, odiava beber, adorava baladas alternativas com aquelas bandinhas de garagem que ninguém conhece, não gostava de estudar, era aventureiro demais e não estava nenhum pouco disposto a mudar. Bruna desejou ter conhecido completamente aquele garoto no dia em que deram o primeiro beijo. Lucas achava que dava pra conciliar as diferenças, mas Bruna era radical demais! Brigaram feio por causa do ovo com manteiga que Lucas havia preparado. Bruna, óleo, Lucas, manteiga.

Ele disse “chega” antes que ela pudesse ouvir. Abriu a lata de lixo, em silêncio, jogou seu ovo dentro e saiu porta afora dizendo um “adeus” que nem a própria Bruna sabe se escutou. Era hora do almoço. Almoço de domingo, bem depois de, horas antes, o rapaz ter feito o ritual sagrado de regar o jardim da garota. Ele era sim seu jardineiro fiel. Se não fosse, qual o sentido de ter passado tantos momentos bons e ruins do lado dela? Qual o sentido de ser conciliador? Qual razão pra tê-la amado tanto?

Ele não sabia. Ela também não. Bruna ficou com seus filmes dublados, suas carnes gordurosas, sua religião, seu trabalho, suas bebidas, seus estudos e seu jardim verdíssimo. Mas ficou vazia, incompleta. Não tinha o que mais queria naquele momento: seu namorado. O talvez e a dúvida agora a regem. Será que valeu a pena jogar tudo fora por tão pouco. Eu, Whisky, acho que não!

domingo, 5 de setembro de 2010

Do alto de vossas cabeças

Este sou eu. Do alto de vossas cabeças, enxergando formigas e olhando o sol se pôr. A cidade cresce e a única coisa que posso fazer é crescer também, vendo as horas e os dias passarem, como se fossem nuvens brancas - grandes e vagarosas. Estou no 14º andar. Como diz aquela poesia, “a sacada é curta, o grito é inevitável”. Não pretendo acordar os vizinhos, riscar os corpos nem te telefonar. O que tenho pra dizer cabe sim nessas simplórias linhas. Basta você perceber.

Morar em apartamento é algo estranho, principalmente pra quem mora no 1º andar. Tudo dali reflete em você e no térreo. Uma rachadura no 34º, uma despedida de solteiro no andar de cima, uma reunião chata de condomínio – onde você sempre é o primeiro a ser indagado sobre algo. É uma responsabilidade tremenda. Funciona quase como ser chefe de família, com a diferença de que você do 1º andar não precisa comprar comida pro vagabundo do último.

Salvo se você não tiver medo de altura e morar no derradeiro andar, sempre existirão cabeças em cima de você. A modernidade nos trouxe isso: pessoas estão morando uma em cima das outras, justamente por causa da falta de espaço nas grandes metrópoles. O que era uma reserva ambiental, agora dá lugar ao maravilhoso "Não Sei O Quê Residence". Aquele parquinho onde você brincava com seus irmãos, hoje nada mais é do que um luxuoso condomínio onde somente desembargadores, médicos cirurgiões e políticos influentes e corruptos moram. Aquele lago foi transformado em um shopping. E com ele veio mais um apartamento, pra diminuir a distância entre o comprador e o produto.

Tudo bem. Morar em apartamento tem lá suas vantagens. Percebe-se que o ser humano, sempre maravilhado com a ideia de poder, viu-se extremamente feliz quando descobriu a possibilidade de ficar perto de Deus e ter acesso a cada passo de cada um lá embaixo. Era coisa de rico. Hoje, é coisa de todos, de quem quer ter uma casa, uma vida – mesmo que financiada em infinitas vezes por um banco do governo.

Tem a maravilha que é ver a noite lá de cima. O espetáculo começa bem cedo. O sol indo embora devagar, as luzes artificiais se acendendo lá embaixo, o céu ficando escuro, cheio de pontinhos brilhantes. É noite. E você é o espectador fiel, de camarote. Deseja pra si ter aquela vista todos os dias. E recomeça o ciclo. Você deixa de lado o fato de não poder ter animais de estimação, de evitar ouvir música alta, de se afastar da natureza e compra um apartamento. Mas tem que dar pra olhar a lua, as estrelas e aquele eclipse que ainda vai acontecer – só não se sabe quando. E esquece-se de tudo!

Quisera eu morar em um lugar assim. Mas não dá. Não quero. Não posso. Prefiro sair pelas ruas em busca da melhor estrela, da melhor lua e do melhor eclipse. E ficar em cima e embaixo de outras cabeças, só de vez em quando!